segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO NO CONCELHO DE ESPOSENDE - UM CORREDOR CULTURAL –


O CAMINHO DE SANTIAGO NO CONCELHO DE ESPOSENDE
- UM CORREDOR CULTURAL – 
I


Por: Manuel Albino Penteado Neiva


“ Desde sempre o Homem procurou o trajecto mais curto e rápido nas suas deslocações. Presidia sempre a intenção de chegar com a maior prontidão ao destino”

ARAÚJO, José Rosa de – Caminhos Velhos e Pontes de Viana e Ponte de Lima, 1962



Introdução


Peregrino
Não é fácil, senão mesmo impossível, definir com rigor, qual o caminho ou caminhos que cruzavam Esposende e que correspondam, actualmente ao percurso utilizado pelos Peregrinos Compostelanos de então.
Esta afirmação prende-se com o facto de, ao longo dos séculos, a rede viária concelhia ter-se alterado com a abertura de novos percursos, com a construção de obras de arte que facilitaram a travessia de obstáculos difíceis, nomeadamente a passagem dos rios e à drenagem de terrenos pantanosos[1]. A este facto está ligada a abertura da primitiva estrada de circulação que cruzava o concelho de Norte a Sul, conhecida por todos como a Estrada Real. De facto, esta estrada aparece-nos a decalcar a chamada Plataforma Alta ou Arriba Recente que acompanha a Arriba de S. Lourenço, entre Palmeira de Faro e S. Paio de Antas. Para além de ser um terreno mais enxuto e, por isso, mais seguro para caminhantes e carruagens, percorria quase sempre a mesma cota o que se tornava menos cansativo.
Até 1835 cruzavam o concelho de Esposende duas estradas consideradas principais, embora em muito mau estado[2]. Uma que corria de Norte a Sul e servia “… para comunicação da Capital da Província do Douro com Viana …” e a outra “… que corre do Este a Leste e comunica a Vila de Esposende com a Capital da Província do Minho, ficando no seu trânsito a vila de Barcelos, cabeça de Julgado”. Sobre a estrada Porto -Viana pedia-se que fosse desenhado um novo traçado pois “… em algumas partes era medonho por ser despovoado e por entre densos pinheirais por isso ainda tem acontecido alguns roubos” pretendia-se que se dirigisse “… esta estrada por esta Vila seguindo pelo Poente dos campos do lugar de Cepães, freguesia de Marinhas, continuando pela de S. Bartolomeu do Mar e por fora dos campos a entrar na freguesia de Belinho, até à ponte de pau sobre a foz do Rio Neiva, sempre em linha recta”. Acrescentava-se que “… sairão desta alteração excelentes e prontos resultados por quanto o caminho ficará mais curto e os viajantes economizarão mais de uma hora de tempo no trânsito da Barca do Lago até Viana já pelo caminho ser mais curto, já por ser plano e até a segurança pessoal será em muito maior grau por ser uma estrada muito mais a descoberto”.
Certo é que, para todas as épocas teremos caminhos distintos, continuando, no entanto, os pontos de contacto entre eles mais precisamente as pontes, barcas de passagem e templos possuidores de relíquias ou túmulos de corpos santos.
Na falta de cartografia antiga que represente, com rigor as estradas e caminhos, pelo menos para períodos anteriores ao século XVIII, teremos que nos socorrer da documentação produzida pelas várias administrações locais, pelos relatos de peregrinações que se tornaram célebres[3], pelos textos dos memorialistas e, acima de tudo, pelo estudo atento da toponímia antiga e mesmo dos próprios vestígios arqueológicos. De tudo se deve retirar ensinamentos mas jamais pensar que se descobrirá a única via de passagem de peregrinos no concelho de Esposende.

Contexto Histórico

Livro de Horas de D. Manuel
É a partir do século IX que o culto a Santiago se vai afirmar e se vai tornar “ Protector das lutas da Reconquista[4]. Começam, ainda no século X, as grandes peregrinações ao túmulo de Santiago e Compostela torna-se num dos centros mais importantes da cristandade.
O seu culto difunde-se rapidamente pelas paróquias e muito próximo de nós, em Castelo do Neiva, aparece-nos a sagração da sua Igreja ao apóstolo Santiago, em 862[5], fazendo a seguinte invocação “ Em Nome do Senhor consagrou a Igreja do Apóstolo S.Tiago o Bispo D. Nausti… na era de 900 “.
Por todo o lado vamos encontrar a simbologia Jacobeia que nos permite identificar os percursos e caminhos que conduziam àquele centro de peregrinação. Para além da consagração de Igrejas ao Apóstolo, surgem-nos com frequência alguns dos seus atributos, nomeadamente a representação da vieira que lhe está associada, em pequenos nichos e templetes campestres.

O Prof. Doutor Humberto Baquero Moreno estudou profundamente os caminhos seguidos pelos Almocreves[6] e a sua importância no desenvolvimento das comunicações inter-regionais portuguesas ao longo da Idade Média[7]. Através dos roteiros feitos por estes viajantes conclui-se, e seguindo o pensamento do Prof. Manuel Riu[8], que até à Idade Média, as vias romanas continuaram a ser os caminhos de maior trânsito. Mas também não nos podemos esquecer que desde muito cedo o curso de peregrinos se fez por uma via, muitas vezes ignorada ou esquecida, que era a via do Atlântico. Como escreveu Baquero Moreno, tanto à cidade do Porto como a Viana, afluíam peregrinos vindos de outras paragens europeias que, chegados ao litoral, procuravam seguir a costa até à Galiza passando por Matosinhos, Mindelo, Azurara, Vila do Conde, Póvoa, Fão, Esposende, Viana e Caminha[9]. Seria um erro grave se nos esquecêssemos que já fomos, mais do que ninguém, uma terra de marinheiros e homens do mar, especialistas em navegação de cabotagem e o mar era, para esses homens, um caminho fácil, rápido e seguro. O Arq.to Lixa Filgueiras[10] afirma que “ quando se fala de Santiago de Compostela, normalmente, as pessoas lembram-se de imediato “do” ou “dos” caminhos – de terra claro, e esquecem todos quantos os que, por mar, chegam ao lugar santo”. Também Paulo Pereira[11] aponta o caminho marítimo para Santiago, dizendo que “… era fácil fazer uma viagem dessas usando como portos de acostagem as terras do litoral”.
Se olharmos atentamente a documentação medieval – nomeadamente as inquirições régias Afonsinas do século XIII, vamos encontrar no concelho de Esposende um quadro assinalável de possessões e terras de Ordens Religiosas, nomeadamente as terras do litoral (Apúlia, Fão, Esposende, Gandra, Marinhas, Mar, Belinho e Antas). A maior parte dos casais de Gandra e Marinhas eram pertença de mosteiros tais como o de Banho, S.ta Maria do Bouro, Vilar de Frades, etc[12]. Apúlia manteve-se, durante séculos, como Couto dos Arcebispos de Braga. Por todo este apoio religioso – como seria de esperar, é evidente a procura destas terras por parte dos peregrinos de Santiago.
Carlos A. Ferreira de Almeida[13] estudou minuciosamente a estrada medieval que saindo da Ponte de Ave – construída no tempo de Afonso Henriques, seguia pela Barca do Lago até atingir o Rio Lima. Segundo este eminente arqueólogo e medievalista “ esta estrada, também costeira, é muito mais seguida, sobretudo nas ligações inter-regionais”. Depois de sair da Ponte de Ave, seguia para S. Simão da Junqueira – onde havia um mosteiro desde o século XI (1084), dirigia-se para a Ponte dos Arcos – referenciada em 1136 e alcançava Rates. Aqui chegados os peregrinos visitavam este cenóbio pois nele estavam depositadas as relíquias de S. Pedro de Rates[14]. Visita cumprida, os peregrinos poderiam seguir dois caminhos distintos. Um que se dirigia para a Barca do Lago, o outro que tomava a direcção de Barcelos, passando por Pedra Furada, Pereira, Alvelos[15] e Barcelinhos[16]. A este caminho procurou-se, em 1488, juntar umas santas relíquias de forma a lhe acrescentar uma mais valia. Assim, e segundo Frei Manuel da Esperança[17]junto ao túmulo da Santa Duquesa D. Constança de Noronha, em Barcelos, tudo estava cercado de muitas ofertas: a saber de cera, e pano de linho, e bizalhos de terra atados, e mãos e queixadas, e dentes de cera, e pés, e outras muitas ofertas[18].
Cadafaz de Matos[19] quando aborda a questão do Caminho de Santiago do Noroeste Português afirma que “para quem vem, da Póvoa de Varzim, siga em direcção ao norte, utilizando o itinerário (à beira-mar) outrora utilizado pelos peregrinos compostelanos, terá como pontos obrigatórios de percurso A-ver-o-mar, Estela, antes de atingir a interessante zona da Apúlia … de Apúlia em direcção a Viana do Castelo, o peregrino visita, então, as localidades de Fão e Esposende … “. Este itinerário já tinha sido defendido pelo Conde de Aurora[20] que o designou por Caminho do Litoral ou Caminho do Noroeste. Registe-se que em Apúlia vamos encontrar como elementos decorativos de um nicho de alminhas (séc. XVIII) toda a simbologia Jacobeia. Também no Livro de Óbitos de Fão de 1751 se registou que “… Catarina Ximenes, de nação castelhana, casada com André Gomes … do bispado do Reino de Granada, romeira peregrina para Santiago da Galiza e chegando a esta freguesia … e recolhendo-se no Hospital da Santa Casa dela e nele com todos os sacramentos faleceu da vida presente … foi sepultada no cemitério da mesma Santa Casa … aos oito dias do mês de Maio de Mil e Setecentos e Cincoenta e Um”.
Mas voltemos ao caminho da Barca do Lago.


[1] - Segundo estudos realizados pela Prof.ª Dr. Helena Granja (GRANJA, Helena Maria L.P. – Repensar a Geodinâmica da Zona Costeira: O Passado e o Presente; Que Futuro? (O Minho e o Douro Litoral), Tese de Doutoramento (policopiada), Braga, 1990), ao longo da costa, ou planície litorânea, entre os rios Cávado e Neiva, e durante a Idade Média, existiam algumas lagoas em comunicação com o mar.
[2] - A.M.E. – Copiador de Ofícios. Documento de 2 de Abril de 1835.
[3] - Entre elas queremos destacar a “Peregrinatio Hispanica” – 1531-1533, de Claude de Bonserval, tratada pelo historiador António Cruz em “Tempos e Caminhos: Estudos de História”, Porto, 1973.
[4] - ABREU, Alberto Antunes de (1993) – Caminhos de Santiago no Entre Douro e Minho, Viana do Castelo.
[5] - PEIXOTO, António Maranhão (1985) – A Inscrição de 862 de Castelo do Neiva: Estudo histórico-filológico, Esposende.
[6] - Os almocreves tinham como profissão o transporte por terra, das mercadorias. Tiveram grande importância desde o Conde D. Henrique até meados do século XIX.
[7] - MORENO, Humberto Baquero (1997) – A acção dos Almocreves no desenvolvimento das comunicações inter-regionais portuguesas nos finais da Idade Média, Ed. Brasília Editora, Porto.
[8] - RIU, Manuel (1959) – La vida, los costumbres y el amor en la Edad Média, Barcelona.
[9] - MORENO, Humberto Baquero (1992) – As peregrinações a Santiago e as relações entre o Norte de Portugal e a Galiza, in”Actas do I Congresso Internacional dos Caminhos Portugueses de Santiago de Compostela”, Ed. Távola Redonda, Lisboa.
[10] - FILGUEIRAS, Octávio Lixa (1992) – Barcos para Santiago – Reflexões, in “Actas do I Congresso Internacional dos Caminhos Portugueses de Santiago de Compostela”, Ed. Távola Redonda, Lisboa.
[11] - PEREIRA, Paulo (2004) – Paraísos Perdidos e Terras Prometidas, Ed. Círculo dos Leitores.
[12] - MATTOSO, José; FALCÃO, José António, FERREIRA, Jorge M. Rodrigues (1985) – A propriedade eclesiástica no litoral nortenho (1220-1258): Contribuição para o seu estudo, Póvoa de Varzim.
[13] - ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de – As vias medievais de Entre Douro e Minho (Tese de Doutoramento policopiada)
[14] - S. PEDRO DE RATES (26 de Abril). Era de origem peninsular e terá sido discípulo dilecto de S. Tiago, o Maior, que fez dele o primeiro bispo de Braga. Pensa-se ter sido este a fundar o título de “Primaz das Espanhas”, usado ainda hoje. Deve-se a ele a fundação da igreja de Rates e daí terá feito um trabalho de apostolado de grande relevância durante os seus treze anos de acção. Segundo a tradição, Pedro de Rates terá sido assassinado, no tempo de Nero, pelos romanos invasores, juntamente com muitos fiéis que se reuniram no templozinho de Rates. O seu discípulo e seguidor, S. Félix, eremita numa serra próxima, deu-lhe sepultura e à volta do seu túmulo ergueu-se, pouco depois, um novo templo formando-se aí uma comunidade monástica. Este convento foi destruído com as invasões árabes mas o Conde D. Henrique procedeu ao seu restauro e ainda hoje se mantém com a sua traça românica. Em 1552 os restos mortais de S. Pedro de Rates foram trasladados para a Sé Catedral de Braga.
[15] - O Cruzeiro do Enforcado ou do Galo existente no Museu de Arqueologia de Barcelos, é proveniente desta freguesia de Alvelos.
[16] - Este caminho por Barcelos foi tratado com profundidade por ALMADA, Conde de (2000) – A Caminho de Santiago: Roteiro do Peregrino, Lello Editores, Porto.
[17] - ESPERANÇA, Fr. Manuel (1656) – História Seráfica, Tomo I, Lisboa
[18] - D. Constança de Noronha era filha de D. Afonso, Conde de Gijon e de D. Isabel, senhora de Viseu (filha bastarda do Rei D. Fernando). Faleceu em 1480. Casou em 1420 com D. Pedro, 1.º Duque de Bragança e 8.º Conde de Barcelos, este em segundas núpcias. Seu sogro, D. João I (pai de D. Pedro), deu-lhe em dote algumas terras que possuía em Guimarães, mais tarde incorporadas no património da Casa de Bragança. D. Constança faleceu com fama de santidade. (Ver: TRIGUEIROS, António Júlio Limpo; FREITAS, Eugénio Andrea da Cunha e; LACERDA, Maria da Conceição Cardoso Pereira de (1998) – Barcelos Histórico Monumental e Artístico, Ed. APPACDM, Braga.)
[19] - MATOS, Manuel Cadafaz de (1985) – Os Caminhos de Santiago na área Porto-Braga-Esposende: Numa perspectiva antropológica e eco-museológica, Esposende.
[20] - AURORA, Conde de (1965) – Caminho Português para Santiago de Compostela, Braga.
    - GIL, Carlos; RODRIGUES, João – Pelos Caminhos de Santiago: Itinerários Portugueses paea Compostela, Ed. Publicações D. Quixote.

Um comentário:

  1. Como complemento ao registo de óbito, deixo aqui mais um registo para provar a afluência do caminho da Costa. Livro dos baptismos de Castelo de Neiva (encontra-se no AD de Viana), ano 1716, folhas 41 verso e 42 faz referência a um casal de peregrinos a Santiago de Compostela.

    Francisca filha de Affonso Areas natural das Esturias/ Próvincia de Castella, e de sua mulher Anna de oli-/ veyra natural da freguesia de S. Miguel de Entream-/ bos os Rios Bispado do Porto e hora vindores que se acha-/ rão nesta freguezia de S.Tiago do Castello indo de Roma-/ ria a STiago de galiza nasceu em esta freguesia em/ nove de Março de mil setecentos e dezaseis e aos onze/ do ditto mes a baptizei solemnemente eu João de Car-/ valho Leytão Abbade desta Igreja foi só mª madri-/ nha maria Dias mulher de Françisco Cerqueira/ desta freguezia fiz este termo ha mes era/ era aSsima/
    o Addade João Carvalho Leitão/ Manoel Pires Baixamar testª/
    Manoel Martins.

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