quinta-feira, 13 de junho de 2019

NA 1.ª GRANDE GUERRA - 23 TERRA- BOURENSES OPTARAM PELA DESERÇÃO


Há 100 anos o mundo celebrava o fim da Grande Guerra.
Portugal tinha mobilizado mais de 100.000 homens e esteve presente nos teatros de guerra de África, desde 1914, e da Europa, a partir de 1916.
A sociedade portuguesa dividiu-se. Se de um lado estavam aqueles que procuravam afirmar o nosso recente estatuto de República, do outro estavam os que viam, nessa via, um desastre nacional com consequências terríveis a nível económico, político e social. As próprias chefias militares não acreditavam na nossa capacidade e muito menos aceitavam uma subalternidade face ao exército inglês.
As informações e notícias sobre a guerra eram vagas, contraditórias e pouco ajudavam à paz social.
De Terras Bouro partiram para o conflito 80 jovens, impreparados e revoltados com a mobilização. Foram para Angola, Moçambique e França (Flandres). Daqui partiram e por lá sofreram, sentindo na pele a adversidade de uma guerra sem igual, de um clima e de um território difícil, da fome e das doenças. Desses, 20 morreram nos campos de batalha: - 6 na Flandres, 3 deles na Batalha de La Lys a 9 de Abril de 1918, 10 perderam a vida em Moçambique combatendo as poderosas tropas alemãs comandadas pelo estratega Lettow Vorbeck e 4 vieram doentes e na viagem de regresso, desta província, faleceram no barco sendo lançados ao mar nas costas africanas da Serra Leoa, Guiné e Marrocos. Deles se fez luto nas freguesias de Balança (4), Castanheira (2), Chorense (3), Gondoriz (1), Monte (1), Souto (4), Valdozende (1) e Vilar da Veiga (4). Outros 17 terra-bourenses conheceram a vida terrível e difícil dos Campos de Prisioneiros na Alemanha, sobretudo nos de Munster II e Dulmen.
 

Nas horas difíceis em que o espectro da morte espreitava, apegavam-se às suas devoções e seguravam, com fervor, objectos oferecidos pelas mães e namoradas nos momentos angustiantes da despedida. Do bolso retiravam terços, medalhas e pagelas “…nessa noite estava nas trincheiras da 1.ª linha sob um fogo vivíssimo do inimigo que vitimou muitos dos nossos, mas que não prejudicou ninguém destes sítios, graças ao bom Deus, à Senhora do Sameiro, da Lapa e de Lourdes”. Alguns “amarravam-se” à Senhora da Paz, que recentemente tinha aparecido na Cova de Iria, muitos outros à Senhora da Abadia, a S. Bento e a S. Torcato.
Da guerra não traziam boas recordações. As autoridades não os receberam como heróis, antes os esconderam e os deixaram na miséria, carregados de doenças colhidas nas trincheiras. Eram os gaseados, os inválidos da guerra e dados, pela Junta Médica, como incapazes de obter sustento próprio. Quantos se viram forçados a mendigar pelos caminhos onde antes brincaram e trabalharam para sustento da família!
Se muitos jovens terra-bourenses se resignaram com a sua mobilização para essa guerra, muitos deles integrando a heróica Brigada do Minho, outros não aceitaram tal desígnio e optaram pela Deserção.
Consultados, atentamente, os 150 processos – Folhas de Matrícula (contingentes entre 1911 e 1916 dos nascidos entre os anos de 1891 e 1896) – dos mancebos de Terras de Bouro, apuramos que 23 deles foram dados como Desertores à mobilização geral para a participação de Portugal no conflito mundial.
Vejamos como tudo aconteceu.
A organização no Exército Português, à época da Primeira Grande Guerra, obedecia ao sistema aprovado em 25 de Maio de 1911 que estabeleceu o fim do serviço profissional, tornando o serviço militar obrigatório por períodos que variavam entre as 15 e as 30 semanas. Foi introduzido um modelo de instrução preparatória aos 17 anos e incorporação aos 20. Todos os reservistas continuavam a ser chamados para a dita “Escola de Repetição” que os ocupava duas semanas por ano.
Pese embora o seu sentido patriótico, não estamos certos que os jovens de Terras de Bouro, militares ou não, partilhassem, sem reserva, que ”o povo portuguez jamais recuou deante dos perigos, por maiores que eles fossem; jamais voltou as costas aos que o provocaram; jamais deixou de ir até ao sacrifício da própria vida, para defender os pactos que tenha firmado com os povos a quem se aliou para a vida e para a morte” (in - Revista dos sargentos portugueses). Este clima de mau estar e, poder-se-á dizer má preparação, é notória quando se faz uma análise do que aconteceu em Tancos, Agosto de 1916 – Milagre de Tancos, em que se denunciava, em relação aos novos oficiais, ter-se ido “buscar à escola indivíduos que nunca haviam transposto uma porta de armas, em cujas veias corre apenas o sangue da juventude (...) e só porque os adorna um diploma, meramente teórico, que com a vida militar não tem o mais ligeiro contacto, reconhece-se que no fim de umas semanas, podem ser regulares oficiais e cingir-se-lhes a espada”.
A preparação militar em Tancos, numa fase inicial (Abril e Julho de 1916) foi baseada na orgânica de uma Divisão formada por duas Brigadas de Infantaria (cada uma com dois Regimentos e cada Regimento com 3 Batalhões de Infantaria). Esta Divisão era apoiada por unidades de Artilharia, Cavalaria, Engenharia e serviços de apoio. No final de Agosto, foi aumentada a força da Divisão a mobilizar, recorrendo a unidades do Norte de Portugal da 8.ª Divisão (Minho).
Como seria de esperar, e já aqui se disse, esta mobilização geral não foi muito bem aceite pela sociedade civil, levando a deserções, a revoltas populares, para já não falar do mau estar entre a própria casta militar.
Registe-se que este movimento desertor não se deu só com mancebos mas também com reservistas que foram, de novo, chamados para esse esforço de guerra.
Abílio José de Araújo, um jovem de 21 anos, nascido na Balança, foi alistado em Agosto de 1916. Depois da recruta é mobilizado como reforço expedicionário para Moçambique para onde embarcaria em Agosto de 1917. Estando já tudo preparado, resolveu no dia 2 desse mesmo mês, desertar (nos termos do n.º 1, art.º 124 do C.J.M., alterado pelo n.º 125) e, certamente, refugiar-se na vizinha Espanha, destino da maioria dos nossos jovens que fugiram à mobilização. Por aí se manteve, nessa condição, até 9 de Julho de 1919, já a guerra tinha acabado, data em que se apresentou, voluntariamente, no quartel. Foi preso e mandado ao Tribunal Militar do Porto sendo, por duas vezes amnistiado desse crime (Dec. 5787 – 5ª de 10 de Maio de 1919). Acabou por pedir licença e emigrou para o Brasil.
António de Azevedo Barroso, da mesma idade e do Campo do Gerês, depois de integrado em Artilharia 5, vai desertar a 18 de Agosto de 1917, eram 7 horas da manhã. Era um fim-de-semana e possivelmente estaria de visita à sua terra. Só se apresentou às autoridades em 8 de Setembro de 1919. Esteve preso até Junho de 1920 altura em que o Tribunal Militar de Viseu lhe concedeu uma amnistia pelo acto de deserção.
António José Alves, com 20 anos, era natural de Carvalheira. Em 13 de Abril de 1917 integrou o Regimento de Infantaria 29, em Braga. Em 8 de Agosto desse ano desertou. Apresentou-se, voluntariamente, e em 11 de Julho de 1919. Foi julgado pelo Tribunal Militar do Porto em 4 de Junho de 1921, sendo amnistiado da pena com base no Dec. N.º 5787 – 5A de 10 de Maio de 1919. Da mesma freguesia eram, Manuel José Martins Ribeiro, de 21 anos, também desertou, quando estava incorporado em Infantaria 29, apresentando-se no dia 9 de Julho de 1919, foi julgado e amnistiado pelo Tribunal Militar do Porto em 25 de Setembro de 1919, e Mário Alves, de 21 anos, do mesmo Regimento de Infantaria, que desertou e se apresentou no mesmo dia que o seu conterrâneo. Foi amnistiado pelo Tribunal Militar Territorial do Porto em 27 de Agosto de 1919 “pelos crimes de deserção e de extravio de artigos militares”. Também João Baptista, com a mesma idade, e natural de Chamoim, integrou o mesmo Regimento. Foi mobilizado como expedicionário para a província de Angola para onde embarcaria em meados de Novembro de 1918. Porém, a 12, desertou e só se apresentou no quartel no dia 8 de Julho de 1919. Foi amnistiado pelo Tribunal Militar Territorial do Porto em 25 de Agosto de 1921 “pelos crimes de deserção e de extravio de artigos militares nomeadamente a farda”. Naturais de Cibões, eram Joaquim Martins de Oliveira e José Gonçalves, ambos de 21 anos. Foram incorporados em Infantaria 29, um na 8.ª e outro na 6.ª Companhia. Ambos desertaram e, curiosamente, apresentaram-se voluntariamente no mesmo dia ou seja 10 de Julho de 1919. Foram julgados pelo TMTP em Agosto e amnistiados do crime de deserção. De Covide, com 21 anos era João Dias Cosme. Foi incorporado no Regimento de Cavalaria 11 e completa a instrução em Dezembro de 1916. Em 16 de Agosto de 1917 desertou e só se apresentou voluntariamente no quartel no dia 10 de Julho de 1919. Foi amnistiado pelo Tribunal Militar Territorial do Porto “pelos crimes de deserção e de extravio de artigos militares nomeadamente a farda”. Emigrou para o Brasil.
Naturais de Rio Caldo eram José Maria da Costa, de 22 anos, e Manuel José Grilo, também da mesma idade. Ambos foram incorporados no R.I. 29, mobilizados para a guerra, desertaram e só se apresentaram, voluntariamente, no dia 8 de Julho de 1919. Foram levados a Tribunal e amnistiados do crime cometido, o José Maria em 20 de Setembro de 1919 e o manuel José em 29 de Abril de 1921.
José Maria Afonso Landeira era de Vilar da Veiga e tinha 22 anos. Em 13 de Janeiro de 1916 foi incorporado no Regimento de Cavalaria 11. Sabendo que iria ser mobilizado para a guerra, desertou e só se apresentou a 26 de Janeiro de 1922. Foi amnistiado pela Lei n.º 1629 de 15 de Julho de 1924.
Estando já em situação de reservistas mas convocados novamente para servirem o exército e a guerra, o que fizeram, acabaram por desertar 11 combatentes de Terras de Bouro.
João Pereira, com 26 anos, natural de Brufe, assentou praça no Regimento de Infantaria 29 em 21 de Agosto de 1911. Nessa altura já era casado com Maria Angelina Rodrigues de Sá. Depois da instrução de recruta foi licenciado indo domiciliar-se na sua freguesia. Em Dezembro de 1916, obedecendo às ordens de mobilização, apresentou-se no quartel. Sabendo que iria marchar para um dos teatros de guerra, em 3 de Janeiro de 1917, desertou. Apresentou-se voluntariamente em 10 de Julho de 1919. Foi julgado no Tribunal Militar do Porto tendo sido amnistiado pelos crimes de deserção em 11 de Junho de 1920. O mesmo aconteceu a Manuel Gonçalves, 25 anos, natural do Campo do Gerês, incorporado, também, em Infantaria 29. A sua deserção aconteceu em 17 de Abril de 1917 e somente se apresentou em 5 de Agosto de 1919. Foi amnistiado pelo TMP. Da mesma freguesia era José Lourenço Fecha, de 26 anos, com idêntico percurso militar, e desertor. Apresentou-se voluntariamente em 5 de Junho de 1922 e levado ao Tribunal Militar do Porto. Julgado, foi condenado à pena de três anos e um mês de deportação militar. Esta pena foi, no entanto, perdoada em conformidade com o Dec. N.º 7839 de 11 de Novembro de 1921 (Este Decreto perdoava o cumprimento das penas por vários crimes em que tenham sido ou venham a ser condenadas as praças de pré dos exércitos de terra e mar até 11 de Novembro de 1921). De Carvalheira era natural Eusébio da Expectação Alves, de 26 anos, que tinha assentado praça em 1911. Foi licenciado em 1913. Ausentou-se para o Brasil em 10 de Agosto de 1913 e não respondeu à chamada de mobilização geral sendo, por isso, considerado desertor a partir de 3 de Setembro de 1917. António José Antunes, de Cibões, com 25 anos, tinha assentado praça em 1912 e incorporado no Regimento de Infantaria 29. Depois da recruta foi licenciado e voltou a apresentar-se no quartel em 12 de Outubro de 1916. Durante os preparativos para a mobilização para a guerra, desertou e só se apresentou, voluntariamente, em 9 de Julho de 1919. Foi amnistiado pelo Tribunal Militar Territorial do Porto em 4 de Maio de 1921.
Com 24 anos e natural de Covide, António Amaro Rodrigues foi incorporado nas Tropas Territoriais do D.R.29 de onde desertou. Apresentou-se voluntariamente no dia 10 de Maio de 1919. Foi levado a Tribunal Militar e aí pediu licença para se ausentar para o Bié – África Ocidental Portuguesa e, logo a seguir para a colónia Espanhola de “Fernando Pó” (hoje esta ilha chama-se Bioko e faz parte da Guiné Equatorial). Da mesma freguesia e do mesmo ano era José António Pereira que se alistou em Setembro de 1912 e foi incorporado no Regimento de Cavalaria 11. Ficou licenciado em Agosto de 1914 e aproveitou para, em Dezembro, se casar com Maria José Pereira e, nessa altura transferiu a sua residência para Miragaia, Porto, Bairro Ocidental e, mais tarde para a Gafanha, concelho de Ílhavo. Reintegrado novamente no serviço militar foi promovido a 1.º Cabo em Agosto de 1917 e logo de seguida fez exame do Curso de Habilitação para Sargentos sendo promovido a 2.º Sargento Miliciano. Nessa altura foi convocado para a guerra e resolveu desertar, considerado, por isso Desertor em Tempo de Guerra. Apresentou-se em 26 de Outubro de 1918. Também de Covide era Manuel Dias Cosme, com 25 anos, irmão de João Dias Cosme, também desertor, que se incorporou em 1913 no Regimento de Artilharia 5. Depois da instrução foi transferido, em 1 de Maio de 1913, para o Regimento de Infantaria 29. Foi licenciado e em 2 de Outubro de 1916 apresentando-se no quartel em Braga onde foi novamente incorporado. Na melhor oportunidade desertou e só se apresentou, voluntariamente, em 10 de Julho de 1919. Foi levado a tribunal militar e julgado no dia 26 de Janeiro de 1921. Foi amnistiado. Emigrou para o Brasil em 1926.
Domingos José Lopes, de 25 anos, natural de Rio Caldo, alistou-se em 1912 e foi incorporado no Regimento de Infantaria 29 onde terminou a recruta em Abril de 1913. Depois de ser licenciado, domiciliou-se na sua freguesia. Na altura da mobilização não se apresentou no quartel e foi dado como desertor. Apresentou-se voluntariamente no dia 9 de Julho de 1919. Foi amnistiado pelo Tribunal Militar Territorial do Porto a 25 de Agosto de 1921 pelos crimes de “deserção e extravio de fardamento”. Abílio Rodrigues de Sousa, de Moimenta, coma idade de 26 anos, alistou-se em 1911 e fez a sua instrução de recruta no R.I. 29, terminando-a em Abril de 1912. Em 1 de Junho de 1913 emigrou para o Brasil e não respondeu à chamada da mobilização geral. Refira-se que a licença de emigração terminou no momento em que Portugal entra em guerra sendo, por isso, obrigado a regressar. Foi capturado pela GNR de Braga no dia 26 de Agosto de 1922 e levado a Tribunal Militar onde foi julgado e amnistiado em 8 de Janeiro de 1923. Em Maio desse ano voltou para o Brasil.

Abel Francisco Fraga, natural da freguesia do Monte, com 25 anos, tinha-se alistado em Setembro de 1912. Foi incorporado, em 14 de Maio de 1913, no R.I. 29 tendo terminado a sua instrução em Agosto de 1913. Foi licenciado e obedecendo ao edital mobilizador, apresentou-se no quartel no dia 2 de Outubro de 1916. Em 17 de Abril de 1917, vésperas de embarcar para a Flandres, desertou e só apareceu no dia 9 de Agosto de 1919. Em 25 de Agosto de 1921 o Tribunal Militar julgou-o e amnistiou-o do crime de deserção. (Texto publicano no Jornal Diário do Minho - Suplemento Cultural -  de 12 de Junho de 2019).

sábado, 1 de junho de 2019

UM FIM DE TARDE DIFERENTE

Ontem tive o incomensurável prazer de passar um bom par de horas na cavaqueira e a recordar bons tempos na casa de um bom amigo escultor. Bastava esse facto para já ter valido bem a pena este meu fim de tarde.
Acontece, porém, que na casa onde estive sentia-se um halo diferente. Não era somente a sua estrutura arquitectónica secular que nos levava a finais do século XIX, ou mesmo a imaginar o frenesim de um período balnear em estância rica e elitista que mexia com a energia do espaço. Era mais do que isso. A casa, os espaços, o jardim, o anexo, alguns objectos, até os silêncios, nos fizeram recuar até ao primeiro quartel de novecentos. Aí sentimos a presença de grandes artistas. Não os vimos, não os ouvimos mas, de facto, eles estavam presentes.
Quem? É razoável que perguntem.
Com o começo da Primeira Grande Guerra muita gente se refugiou dos teatros de guerra. Muitos vieram para Portugal. Um desses artistas refugiados foi precisamente Robert Delaunay (1885 – 1941), um artista francês que usava o abstracionismo e o cubismo no seu trabalho e sua mulher Sonia Delaunay (1885 – 1979), pintora, designer, figurinista e cenógrafa ucraniano-francesa. Com eles vinha seu filho Charles. Robert a convite de Kandinsky integrou o grupo “O Cavaleiro Azul” formado por artistas abstratos de Munique. Fixaram residência na sua “Simultané”, uma casa de arquitectura interessante em zona frente ao mar. Era nesta casa que recebiam visitas constantes de amigos portugueses, grandes mestres, - Amadeo de Souza-Cardoso, Almada Negreiros, Samuel Halpert e Eduardo Viana. Não falamos com eles mas, tenho a certeza, que ouviram as nossas conversas de fim de tarde.






sexta-feira, 17 de maio de 2019

DE SOLDADO DE EL-REI D. SEBASTIÃO A ESCRAVO MOURO Um esposendense em apuros – a história de Francisco Pires

Por - Manuel Albino Penteado Neiva


1 - Contexto Histórico


Recuemos a 20 de Janeiro de 1568 “dia do bem-aventurado mártir Santo Sebastião deste presente ano que é o XIII de meu nascimento, me entregou o Cardeal Infante meu muito amado e prezado tio … a governança destes meus reinos e senhorios[1].
Como vamos ver D. Sebastião não foi, de facto, um monarca da corte. Desde que assumiu o trono, deslocava-se constantemente pelas terras do reino (Évora, Almeirim, Sintra, Santarém, Algarve e até África com excepção das terras do centro e norte). Com ele seguia toda a sua corte. A caça, nas suas coutadas de Almeirim, era a sua ocupação favorita.
Assumindo a governança apenas com 14 anos, vai apresentar-se como um rei focado, principalmente, em dois sentimentos, a fé e o espírito militar, dois objectivos que marcaram, de forma indelével, o seu reinado. Para além da missa diária e uma prática religiosa obstinada, pedindo constantemente aos bispos para oferecerem orações por ele, a perseguição constante aos judeus e ciganos, D. Sebastião era muito dado a causas supersticiosas, acreditando piamente, em visões, em fenómenos, tantas vezes naturais, mas aos quais ligava importantes premonições. Fazia questão em enviar ao Sumo Pontífice notas regulares sobre “o que se fazia para a conservação da fé católica nos reinos de Portugal[2].
Em meados de 1568 D. Sebastião recebe uma carta do seu Embaixador Álvaro de Castro onde este dá conta de alguns ataques mouros a possessões portuguesas no norte de África. Será, certamente, a primeira vez que o monarca é confrontado com esta matéria.
A vontade de se fazer um Rei – Soldado era enorme e em 17 de Março de 1571 fala, pela primeira vez, em ir ao norte de África – há quem evidencie esta vontade como uma fuga aos constantes apelos ao casamento “... trata agora mui deveras de querer passar en África a conquistarla”. É assim que em 5 de Janeiro de 1572, de Almeirim, D. Sebastião “mandou chamar os “Regidores” das principais vilas e cidades deste reino para pedir-lhes a vinda de gente para esta armada que quer fazer…”. Esta vontade de ir a África fez com que D. Sebastião recusasse, numa primeira fase, o convite por Veneza – Cardeal Alexandrino, legado do Papa, para que Portugal integrasse a Liga dos cristãos contra o Turco. Depois, concordando com a mesma, começou a mobilização de gente para esta armada. Contava o monarca com mais de 20.000 homens. D. Sebastião reúne, em Maio de 1572, com Rui de Sousa Carvalho, Capitão da praça de Mazagão, e agora nomeado Capitão da praça de Tânger, e com ele aborda a questão da guerra aos mouros.
 Durante o mês de Agosto de 1572 fica pronta para zarpar a Armada que “era de trinta velas, muito boas e muito bem armadas”. Surta no Tejo aguardava ordens para partir.
Era uma segunda-feira e o jovem rei tinha-se mudado de Penha Longa para o seu Palácio de Lisboa. Na terça-feira, e porque pretendia rumar ao Algarve, pede ao seu secretário Fernão da Costa que faça chegar todos os documentos que estão para despacho. Estamos a 19 de Agosto de 1572. Entre a variada documentação está uma Carta Régia dirigida ao povo da ribeira de Esposende onde se lê “ey por bem e me apraz de fazer vila o dito lugar de Esposende e que o que daqui em diante para sempre se possa chamar e chame villa de Esposende e cativo e aparto de qualquer sujeição e superioridades que a dita vila de Barcelos nele tem … o ey assim por bem e lhe dou por termo desta maneira de meã legoa em circuito de Esposende. Fica claro que Barcelos não aceitou esta separação e procurou, por todos os meios, dificultar a vida às gentes de Esposende que se queixavam de não poderem vender nos mercados de Barcelos muito menos usar as abegoarias para os seus gados pois “estava cercado pelo termo  de Barcelos”. O Rei vinha de viagem de Lagos e no dia 5 de Outubro, o seu secretário Baltazar Ferraz, saindo de Lisboa, foi ao seu encontro. Estava o soberano em Alcoutim e aí lhe apresentou, para assinar, o que o fez, uma Carta Régia para que Barcelos e Esposende pudessem “vizinhar” uma com a outra sem para isso apresentarem cartas de vizinhança “tal como o faziam sendo Esposende termo de Barcelos”.
Em 13 de Setembro um grande temporal abate-se sobre Lisboa e destrói a maior parte dos navios da armada.
Estando em Évora no dia 1 de Dezembro de 1572, D. Sebastião escreve ao Duque de Alba para que este permitisse obter munições em Espanha “para a campanha que ele intentava realizar em África”. Logo de seguida o jovem monarca informa Filipe II querer ir a África, no ano seguinte, e, por isso, era sua vontade “fazer jurar o Cardeal por príncipe”. Corriam notícias de que D. Sebastião “anda com falta de saúde … com as pernas debilitadas e o corpo frio”. Para muitos, esta “frialdade” era notória, também, em relação a um suposto casamento, exigido pelo povo, que desejava um sucessor, para D. Henrique e mesmo para o monarca espanhol D. Filipe. Aliás já em 7 de Fevereiro de 1569 o Cardeal escreve a Filipe II, sobre esta matéria, pedindo-lhe “que não deve haver mais dilação”. Estes não perderam muito tempo e foram várias as candidatas a noiva, que lhe apresentaram[3]. O jovem rei recusava categoricamente essas propostas dizendo que “pelo Reino porei a vida muitas vezes; e pela honra e pela Fé, porei honra, e vida, e tudo; e pelo governo do Reino, e meu, não porei a honra do Reino, e minha…”. Para a nobreza era estranha “a pouca gana que o rei tem de casar-se…” e havia mesmo que, imaginasse que este comportamento teria a ver com a Fé do monarca e que “a paixão o pusesse em perigo de ofender a Deus porque era tão bom cristão e temeroso de Deus …”.
Entramos no ano de 1574, mês de Março. No dia 29, estando D. Sebastião em Almeirim, decidiu assinar uma nova Carta Régia para os moradores de Esposende regulando o processo de eleições para almotacés. Em vez de serem eleitos todos os 3 meses, e porque eram pescadores e andavam no mar, seriam eleitos anualmente.
A necessidade em se afirmar como um monarca capaz de guerrear os infiéis, decide “visitar” as possessões no norte de África. Em 14 de Agosto de 1574, o embaixador castelhano Juan de Borja, escreveu a Filipe II, informando-o de que estaria para breve a partida de D. Sebastião para “aquelas bandas” pois “são tantas as demonstrações para crer que é verdade”. Nessa altura D. Sebastião manda, através do seu Embaixador em Roma, João Gomes da Silva, uma carta ao Papa Gregório XIII informando-o da sua ida para a África “em virtude do poder do Xarife aumentar constantemente, pelo que assentara que lhe devia mandar fazer guerra com mais poder do que ate aqui se lhe fazia pelos lugares que tenho em África”. Informava ainda que já tinha seguido para lá D. António “com muita gente nobre pera que se exercitasse nesta guerra, e do exercício dela sairiam capitães e homens experimentados com que milhor se pudesse prosseguir e fazer ao diante”.
A sua chegada a Ceuta vai acontecer em 24 de Agosto e aí vai permanecer até finais de Outubro, visitando “Ceita” e “Tanjere”. Queria, sobretudo, “entender milhor, e de mais perto o como poderia mandar fazer guerra ao Xarife”. Esta acção militar era, no entanto, criticada quer pelo Duque de Alba quer pelo próprio Filipe II aos quais D. Sebastião tinha pedido, para o efeito, um empréstimo.
A ida ao norte de África e as informações que o Capitão de Tânger Duarte de Menezes lhe transmite, já em Abril de 1976, sobre as ameaças que para Portugal representavam os mouros nesse mesmo território, vêm alicerçar ainda mais a vontade do jovem monarca em montar uma expedição militar. Começa logo por nomear D. Luís de Ataíde, de Atouguia da Baleia, para General das forças que iriam passar a África e, em simultâneo, procurar alistamento de contingentes estrangeiros. Inicia-se, também, o recrutamento por todas as vilas e cidades do reino e “manda levantar 13.000 portugueses”. Os Conselheiros mais directos, D. Cristóvão de Távora e D. Francisco de Portugal procuraram convencer o Monarca para as dificuldades da empresa de África, marcada para Outubro, levando pelo menos D. Sebastião a adiá-la para a Primavera de 1578. Até o seu General Luís de Ataíde o tentou demover o que lhe valeu um desterro para a Índia. A política do rei em relação à África começa a ser muito contestada por todas as camadas sociais. Atitude que desagradava ao monarca levando-o a publicar um Alvará Régio que determinava punições severas para quem falasse “em coisas tocantes ao governo do Reino”. Começam a surgir impostos eclesiásticos “para custear a empresa” e em 20 de Abril de 1577 D. Sebastião informa sobre “as galés que hão-de vir de Castela e os alemães que se hão-de levantar” bem como do recrutamento de tropas em Itália com o mesmo objectivo. Era claro para Filipe II que o “Rey á combertido todos sus desseos affectos y apetitos en esta imaginaçión de hazer jornada de Africa y de gánar honrra de soldado”.
Já antes o dissemos que D. Sebastião tinha uma certa predileção pela mística e pelas manifestações premonitórias. Em 9 de Novembro de 1577, indo o monarca de Vila Franca de Xira para Salvaterra, assistiu, maravilhado e assustado, ao “aparecimento, pela primeira vez” de um cometa[4], e dele falou durante a ceia na presença do Deão da Capela, D. António de Castelo Branco. Terá sido um sinal em relação à jornada de África? Certo é que D. Sebastião, 12 dias depois está a mandar para o Papa Gregório XIII a informação de que “a expedição a Marrocos teria lugar em Março do ano seguinte e que o lugar a acometer seria Larache”.
Em 6 de Dezembro toma a decisão de “pessoalmente, a tomar parte na empresa de África
O ano de 1578 começou com os preparativos para essa jornada e o monarca encarrega, entre outros, o Duque de Bragança “de tomar os mantimentos e coisas necessárias para a jornada”. Cada vez acreditava mais que iria ser um êxito essa campanha e ao felicitar Filipe II pela vitória das suas tropas na Flandres manifestava “confiança no êxito da jornada de África”. A desconfiança nesse êxito era, no entanto, cada vez maior por parte da nobreza. Se era certo que D. Sebastião procurava equipar o seu exército com meios capazes de enfrentar um território difícil “trincheras portátiles, y anda fabricando ciertas maquinas que sirvam de carros y de trinchas”, não faltavam vozes a clamar que “no sé que imagina ni creo que se ha visto jamas moverse un Principe en persona á ponerse en tierra de enemigos” e toda a gente esperava algum milagre que impedisse a jornada e alguma clarividência daqueles que aconselhavam o rei a fazê-la, homens que jamais participaram em combates. Registe-se que grande parte do seu exército, para além de nobres inexperientes, era formada por jovens com idades compreendidas entre os 12 e os 20 anos “nasceu este Antonio Soares no anno de 1563 embarcouse com El-Rey D. Seb.am a 24 de Junho de 1578 tendo quinze annos de idade com seu irmão Gaspar Gomes de doze annos; esteve captivo nove annos resgatouse no anno de 1587
Em 13 de Março de 1578 D. Sebastião convocou para a sua antecâmara 140 cavaleiros “particulares”. Recebeu-os individualmente e colocou-os ao corrente do seu projecto, convidando-os para irem com ele àquela jornada. Enquanto isso encarregava alguns dos seus embaixadores de pedirem empréstimos aos senhores das grandes casas europeias e mesmo procederem ao recrutamento de tropas mercenárias (alemães, espanhóis e italianos). Pede, entretanto a Filipe II que fechasse o trânsito nos portos de Pefion e Melilha para que não houvesse notícias para Molei Moluco (Mulei Maluco – Abu Maruane Abdal Malique)[5]
Para o rei não seria difícil juntar “cerca de 600 velas, entre elas uma grande quantidade de urcas” e fazer o desembarque em Arzila.
Depois das exéquias fúnebres de sua avó a Rainha D. Catarina, de finais de Fevereiro até Abril, o jovem rei vai acelerar o processo da ida a África e uma das medidas foi a de isentar de sisa e portagens as “coisas que se venderem para o exército que vai a África
Como era de esperar no dia 13 de Junho de 1578, D. Sebastião redigiu o seu testamento e nomeou, como Governadores do Reino, Pêro de Alcáçova, Arcebispo de Lisboa, João Mascarenhas e Francisco de Sá e Menezes. No dia seguinte, era um sábado, pela manhã, “saiu elRey dom Sebastião dos seus Paços da Ribeira com toda a monarquia deste reino… e se foi logo embarcar na sua galé real”. Antes porém, foi “à igreja maior (Sé) acompanhado de toda a nobreza que o segue, ouviu missa solene e assistiu, depois, à bênção do seu estandarte”. Devido ao mau tempo o rei permaneceu na sua Galé Real cerca de 11 dias.
A largada da armada deu-se no Domingo, dia 24 de Junho de 1578 e do Tejo saiu “uma grossa armada de galés, galeões e naus”.
No dia 25, ainda em Belém e na sua galé, escreve a Miguel de Moura uma carta “Indo eu cõ a ajuda de Nosso Sõr fazer por my esta jornada em Africa, e sendo da importância que vos tenho dito (e se sabe) o modo de que devo deixar ordenadas as cousas destes Reinos”.
No dia 30, já em Cádis, D. Sebastião decide não desembarcar em Arzila, desconfiava que os mouros aí o esperariam e a jornada por terra seria mais difícil e toma a decisão de desembarcar em Larache. Em 8 de Julho aporta a Tânger onde foi recebido pelo “Xarife” e aqui ficou a saber-se que “Meluco” estava em Zale com uma pequena força para fazer frente ao exército português. Seguindo caminho chega a Arzila no dia 17.
 O encontro final vai acontecer a 4 de Agosto e um dos últimos textos, escrito por Juan da Silva, diz que castigou Nosso Senhor aquele Rei mancebo, orgulhoso da própria fama, que seu tio e todos os que lhe queriam bem adivinhavam semelhante tragédia.
Por muitos apelidado de rei mártir mas também aquele que conseguiu levou ao martírio da Pátria. Certamente não houve uma única família nobre portuguesa que não tivesse conhecido o infortúnio de receber a notícia da morte de um seu familiar em Alcácer-Quibir. Queiroz Velloso elaborou uma interessante listagem desses mortos[6].


2 – O Contributo de Esposende


 Tendo Esposende beneficiado do beneplácito régio com três Cartas, uma de Elevação a Vila e Concelho, outra sobre a eleição dos seus Almotacés e ainda outra sobre a Vizinhança com Barcelos, todas de grande agrado da população deste concelho, era natural que no momento do apelo do Rei à mobilização para a Jornada de África, os moradores deste concelho se tenham disponibilizado para tal.
Um dos nomes de maior relevância, até pelo cargo que ocupava, foi Gaspar de Barros da Costa, o 1.º Capitão-Mor de Esposende que fez questão em oferecer-se ao Duque de Barcelos para essa expedição.
Segundo Oliveira Martins[7] Gaspar de Barros era filho de Diogo Afonso e de Grácia de Barros da Costa. Era Fidalgo da Casa Real e, por isso, D. João, sexto Duque de Bragança, na altura encarregado de obter mantimentos para a primeira Jornada Africana, terá escrito a 25 de Agosto de 1573 uma carta a convidá-lo a integrar a armada do Rei. Não podendo ir, em sua vez manda o seu filho Gregório de Barros da Costa que por lá morreu.
Num Processo de Inquisição de Coimbra feito ao Reverendo Manuel de Barros Pereira escreveu-se que Gregório, seu tio, “acompanhou ao Senhor Duque D. Teodósio, pai de Sua Majestade, na jornada de África, com armas, criados e cavalos, em uma embarcação, donde não tornou”.
Pese embora apareçam referências a listas sobre fidalgos mortos, regressados, vivos e resgatados de Alcácer-Quibir, pouco se conhece sobre este processo e os elementos que aparecem são, muitas vezes, confusos e dispersos.
Queiroz Velloso apresentou-nos uma lista de 105 cativos resgatados. Aquilino[8] trouxe-nos relatos de cativos - “Era um alarve pobre do aduar do Xeque Tumulaco que, de sociedade com outros, arrebanhou uns quarenta cativos e, como uma récua e a trouxe-mouxe, os foram tangendo adiante deles, certos de que tinham ali boa melgueria a troco do resgate que pagariam ou vendendo-os como escravos. Uma vez na malhada dos beduínos, apontando a insígnia da Cruz de Malta ao peito, capacitou-os D. António que era mufti, um mufti de uma igrejola qualquer, e resgatou-se, com ajuda de um judeu troquilhas e especulador, por uma tuta-e-meia. Foi o primeiro português que se libertou do cativeiro, e tal facto só depõe a favor do seu engenho e avisada inteligência."
Terão sido centenas, os aprisionados nesta batalha, muitos deles aprisionados e, depois, vendidos como escravos.
Francisco Pires, filho de António Pires, lavrador e de Maria Martins “de nação portuguesa, natural da vila de Esposende, de corpo meão e sobarba de idade de vinte e dois anos até vinte e três anos pouco mais ou menos de cor trigueira” foi um desses rapazes de infortúnio[9]. No documento diz se natural de Vila Cova[10], do termo de Esposende e disse que “foi com El Rei Dom Sebastião à África”.
Esta confissão foi feita no dia 2 de Março de 1583, “ na Cidade de Ceuta, na Santa Sé dela, estando ali presente o muito ilustríssimo senhor Licenciado Diogo Pinto, Arcediago na dita Santa Sé, Provisor e Vigário Geral no Espiritual e Temporal pelo muito ilustríssimo senhor D. Manuel da Silva, Bispo de Ceuta”.
Confessou que até chegar aqui a “Seita” (Ceuta), sempre seguiu a “seita maomética” - tudo exteriormente – e com “contenção e vontade para achando oportunidade para vir à terra de cristãos”. Nesse mesmo dia “se foi á Sé da dita Cidade e pediu ao dito senhor provisor com muitos sinais de contrição que o absolvesse da excomunhão e apostasia[11].
Francisco Pires disse que “havia quatro anos e que iria para cinco que cativara na batalha de Alcácer com El Rei Dom Sebastião que está em glória”. Este testemunho é importante já que este jovem, que ainda não partilhava o mito sebástico, afirma que o monarca faleceu naquela batalha e que já estava “em glória”. Depois de aprisionado “fora levado a Larache e a Fez e vendido aos turcos” de Argel[12], para servir nas galés. Como criado/escravo, alguém lhe disse que se convertesse à religião muçulmana, pois era pobre e não tinha “remédio para se resgatar”. Se assim fosse, poderia vir a ser um homem livre. Foi isso que pediu ao seu “dono” e este, nessa condição de o ver turco, o libertou das galés “e ele foi disso contente e lhe deu a liberdade então disse ele queria ser mouro e o retassaram e lhe puseram nome Jafé”. De seguida impôs-lhe a “turdesqua” e por mouro “era havido e tido comummente das pessoas que o conheciam e em Argel”.
Francisco confessa que enquanto convertido “jejuou alguns dias do jejum do Ramadão não comendo todo o dia se não à noite e isto quando andava com os turcos e quando se achava com os cristãos ou podia comer sem o verem comia sem ter conta com o jejum”. Diz ainda que esteve cerca de dois anos em Tituão (Tétouan) “onde também jejuava o dito jejum do Ramadão da maneira que tem dito e que não fez mais cerimónias algumas de turcos as quais cerimónias fez exteriormente pelas razões que tem dito”.
Estando em Tétouan, em finais de Fevereiro de 1853, ele e outro cativo cristão fugiram “e se lançaram pelos muros fora com uma corda e andaram toda a noite e passaram dois rios com perigo de sua vida”. Chegados a Ceuta foram para a Sé e logo se apresentaram ao confessor e “confessou suas culpas e ele o mandou confessar e comungar e que se apresentasse” na Mesa da Inquisição. Aqui chegado, em 15 de Março, foi-lhe perguntado “se ia às mesquitas fazer o culto e se rezava o Corão de mouros”, respondeu “que não fazia rezas das ditas coisas nem guardava as sextas-feiras nem se casou e que bebia vinho e que não comia carne de porco boa pelo não ter nem se matar”. Sobre questões de guerrear ou matar cristãos informou que “só pelejou contra cristãos por que se achou na tomada de duas naus francesas mas não trazia armas”. Confessou que nunca denunciou nenhum cristão, quer em Argel quer em Tétouan, e que mesmo trajando à mouro, sabiam que ele era cristão e que “conversava e comia com eles e se declarou a muitos deles que era cristão os quais eram cativos em Argel de seu senhor e em Tituão e ele os quisera trazer consigo mas não pode e que disso sabem Fernão Pires morador em casa que é cativo”. Relata que trouxe consigo para Ceuta o dito Fernão Pires e um “castelhano que estava cativo em Tituão que se resgatou cujo nome não sabe que anda nesta cidade”.
Depois de ouvido e se ter mostrado arrependido, foi absolvido da pena “pela ordem e cerimónias com que se absolvem os reconciliados” alegando Diogo Pinto, que cumpria a Provisão de “El Rei Dom Henrique que está em Glória e que se mandou ler por mim Escrivão outra Provisão de El Rei Dom Sebastião que está em Glória pela qual lhe perdoa todas as penas postas pelo direito aos que ordinariamente se apartam de Nossa Santa Sé Católica”. De seguida mandou-o confessar-se, o que prometeu, e “de nunca mais se tornar aos ritos e cerimónias maométicas nem para qualquer via se afastar da nossa santa fé católica e outro sim prometeu que dentro de um mês e assinou se apresentaria aos muito ilustres e reverendíssimos senhores inquisidores da cidade de Lisboa e de sua parte ele prometeu que seria tratado benignamente e ele não seria lançado a veto penitencial”.



[1] - Carta de D. Sebastião ao Pontífice – Lisboa, 3 de Março de 1570.
[2] - Os documentos citados ao longo deste texto, estão devidamente indexados nos Itinerários de El-Rei D. Sebastião (1568-1578), anotados pelo Prof. Joaquim Veríssimo Serrão e publicados pela Academia Portuguesa de História em 1987 (2.ª Edição)
[3] - Uma delas era Princesa Margarida de Valois, irmã do Rei de França; outra foi a Infanta D. Isabel, filha de Filipe II…
[4] - Da forma como ficou registada esta notícia em arquivo real, é legítimo perguntar-se se terá sido mais um avistamento do conhecido Cometa Halley.
[5] - Era o Sultão de Marrocos ao tempo da batalha de Alcácer-Quibir.

[6] - QUEIROZ VELOSO - D. Sebastião, 1554-1578, Ed. Empresa Nacional de Publicidade, 1935; ver também MENDONÇA, Jerónimo de - A jornada de África / - Porto : Educação Nacional, 1941.

[7] - MARTINS, João Maria Leitão de Oliveira – Gerações da Fundação da Vila de Esposende, Ed. Forum Esposendense, Esposende, 2004.
[8] - RIBEIRO, Aquilino - “António I, o Rei Efémero”, in Príncipes de Portugal – Suas Grandezas e Misérias, Lisboa, Livros do Brasil, 1952
[9] - Tribunal do Santo Ofício – Inquisição de Lisboa, Proc. 7555 (PT/TT/TSO-IL/028/07553
[10] - Pensamos estar errada esta naturalidade pois Vila Cova é do termo de Barcelos. Facilmente se terá confundido com Vila Chã, essa sim do termo de Esposende e praticamente vizinhas.
[11] - Apostasia "estar longe de"- tem o sentido de um afastamento definitivo e deliberado de alguma coisa, uma renúncia de sua anterior fé ou doutrinação. Ao contrário da crença popular, não se refere a um mero desvio ou um afastamento em relação à sua fé e à prática religiosa. Um caso extremo, é aplicação da pena de morte para apóstatas na religião islâmica em países muçulmanos.
[12] - Argel é a capital, cidade mais populosa e principal centro financeiro, corporativo, mercantil e cultural da Argélia.