domingo, 11 de abril de 2021

FORJÃES NA TRADICIONAL ARTE DOS BONIFRATES COM MESTRE DOMINGOS BASTO MOURA

 

FORJÃES NA TRADICIONAL ARTE DOS BONIFRATES COM MESTRE DOMINGOS BASTO MOURA

 

Por: Manuel Albino Penteado Neiva


[…] trabalhar sozinho dentro de uma barraca de fantoches obriga a um esforço de cuja violência o público nunca se apercebe. Muitas alturas há em que seguro 2 bonifrates numa mão enquanto com a outra manipulo um boneco que volteia um pau. Depois, há que manter sempre húmida a fita de nastro que envolve a palheta metálica que pomos na boca. Para isso, somos obrigados a evitar o vinho, as sardinhas, as azeitonas […]

Henrique Duarte, Bonecreiro Popular Português

Quem não se lembra de ir a uma feira e parar em frente de uma barraca onde se exibiam aqueles bonecos barulhentos, truculentos mas, lá no fundo, engraçados e vistosos, não pelo seu trajar, mas pelas cores garridas das chitas ou bramantes? Traulitada para aqui, traulitada para ali, estavam sempre dispostos a dialogar com os mais novos que, sentados no chão e de olhos bem abertos, ocupavam a primeira fila. Diga-se que a minha experiência, além de admirador desta arte de bonifrates, nas festas e feiras das terras vizinhas, nomeadamente nas Cruzes, em Barcelos, resume-se a pequenos espectáculos, com improvisadas marionetas, com que mimava os meus sobrinhos mais pequenos, que, sentados no chão da cozinha, esperavam, ansiosos, pela aparição dos bonecos no janelão que ligava aquele espaço ao corredor, assim como pelas primeiras onomatopeias já que não dominava o uso de qualquer tipo de palheta. Bons tempos!

Poder-se-á dizer que esta arte vem no seguimento do tradicional desempenho da figura grotesca do Polichinelo e trazida para Portugal, quiçá no século XVII, por marionetistas italianos e franceses. Há quem defenda que a prevalência do nome Roberto, terá a ver com uma comédia de cordel com grande repercussão, intitulada "Roberto do Diabo".

Pese embora a publicação de alguns textos sobre esta matéria, recordamos aqui Henrique Delgado (1938-1971) que estudou muito bem o fenómeno do Teatro de Marionetas em Portugal, não há, ainda, um tratado sobre a Arte dos Bonifrates quer a nível da representação, quer no que diz respeito ao trabalho de bonecreiro.

A preservação desta arte tem merecido a atenção, para além dos executantes, do Museu da Marioneta (Lisboa), do Museu das Marionetas, do Porto e do próprio Teatro de Robertos Francisco Mota, também na cidade do Porto e, sobretudo João Paulo Seara Cardoso (1956-2010) – o Senhor Marionetas, do Teatro de Marionetas do Porto, que cedo se apercebeu da necessidade em preservar esta arte dos robertos, indo aprender com o grande Mestre António Dias. O próprio Museu da Marioneta “propôs a inclusão do Teatro Dom Roberto no Inventário Cultural do Património Cultural Imaterial nacional”.

Estas representações, quer os textos, a maior parte das vezes transmitidos pela oralidade, quer os gestos, quer mesmo os próprios bonecos, eram alvo de algumas críticas e até considerados impróprios para alguns lugares. Irene Margarida diz-nos que as estruturas da igreja se recusavam a que estes “teatros” acontecessem nos adros das igrejas. Recordemos que alguns roberteiros adaptaram representações sacras às exibições dos robertos o que, como diz o povo, não dava certa “a letra com a careta”.

Para os menos atentos, há diferenças entre a manipulação da marioneta e do fantoche – onde se empregam os cordéis e arames, e a manipulação do roberto ou títere que é feita directamente pelas mãos ou dedos, como de luva se tratasse, daí se chamarem, constantemente, bonecos de luva. Um elemento fundamental para estas representações é a palheta, habilmente preparada à base de duas finíssimas chapas metálicas e um pouco de fita de nastro, colocada na boca para a obtenção de um som estridente, que caracteriza o teatro de robertos.

Estamos a falar de um trabalho artesanal de muita paciência.

Um dos grandes estudiosos e profundo conhecedor desta arte dos bonifrates é, como já dissemos, Francisco Mota, um excelente titereiro, fundador do Teatro de Robertos situado na Rua do Almada, no Porto. Aí se conservam as memórias desta arte de rua e, por coincidência, alberga o espólio que pertenceu a Mestre Domingos Basto Moura.

 


O Mestre Domingos Moura

De nome completo Domingos Basto Moura, nasceu no Largo de S. Roque, Forjães - Esposende, no dia 19 de Junho de 1921. Era filho de Manuel António Dias Moura, natural de Forjães e de Antónia Gonçalves Bastos natural da vizinha freguesia de Aldreu concelho de Barcelos Era um exímio manipulador de robertos iniciando esta sua actividade artística por volta de 1940. Para além de manipular era ele quem confeccionava os seus próprios robertos.


Morreu a 14 de Abril de 1995, sem que o próprio jornal da terra, que o viu nascer, se alongasse mais que uma linha na notícia. Em 2005 tivemos a honra de coordenar e publicar a Rota do Artesanato de Esposende, iniciativa do Rotary Club desta cidade, na qual figura uma pequena biografia de Mestre Domingos Moura. Em 2008 foi Cândido Rodrigues que, usando o seu blogue Simplesrecanto, recorda este mestre bonequeiro lamentando que “ainda não foi alvo da homenagem que merece pelos serviços prestados à cultura popular deste país, recordando-o como “um dos maiores no teatro de marionetas (robertos) do século passado”, desafiando os “seus conterrâneos forjanenses à homenagem que merecem todos aqueles que lutam ou lutaram pela preservação e divulgação da cultura popular”. Também a Dra. Irene Margarida, no seu trabalho Vivências I, editado em 2010, dedicou um texto a Domingos Moura.

Terá sido por volta de 1940-50 que Mestre Moura terá tido os primeiros contactos com os robertos. Aprendeu e exercitou esta arte no conhecido "Pavilhão Mexicano” de Manuel Rosado que já albergava mais de 100 pessoas e que contava com um elenco de 6 colaboradores manipuladores de marionetas de fio e bonecos de luva. Havia ainda, para animar, uma orquestra musical. Foi precisamente neste ambiente que nasceu, para artista, o nosso Mestre Domingos Basto Moura.

Mais tarde, actuando por conta própria, percorria as feiras e romarias e, fora de época, montava, com frequência, o seu teatro itinerante, diga-se pequena barraca ou guarita, na cidade do Porto, escolhendo os Jardins da Cordoaria ou os do Marquês, mas também a Rotunda da Boavista ou o Largo da Maternidade Júlio Dinis. Os Domingos era os dias escolhidos, sempre ao final das missas, pois teria público certo e acabava por arrecadar umas moedinhas. A época de Verão era sempre o seu S. Miguel, percorrendo as praias do norte, desde Moledo até ao Porto. Segundo informação colhida no texto de Irene Margarida, Mestre Moura chegou a apresentar-se em Lisboa e no Algarve.

Cada bonecreiro criava os seus próprios robertos e Basto Moura, nas suas paragens por Matosinhos, aliás onde viveu, criou e celebrizou o seu a quem chamou Artur ou Arturinho. Em termos de representações o seu repertório era, mais ou menos, o tradicional, com textos burlescos, com predominância para o da Tourada à Portuguesa, O Barbeiro Diabólico e o Assalto à Casa do Lavrador Avarento.

Enquanto colaborador de Manuel Rosado, de certeza que apresentou inúmeras vezes o repertório deste grande roberteiro como Carolina e o Esqueleto, O Milagre de Santa Isabel, o Zé do Telhado, Marquês de Pombal e os Jesuítas, o Zé da Aldeia, o Milagre de Santo António e tantos outros.

Depois de muitas dificuldades, e agruras da vida, acabou por adoecer. Resolveu passar os seus últimos dias na sua terra Natal. Acomodou-se numa pequena barrava de matraquilhos, localizada no Largo de S. Roque, actividade que explorava depois de impossibilitado de continuar com a sua arte de roberteiro. Foi neste exíguo e desaconchegado espaço onde faleceu.

Para a feitura dos seus bonecos usava, sobretudo a madeira de pinho, esculpindo a cabeça e apurando os pequenos detalhes, dos mesmos, com pequenos formões e canivetes. O corpo ou vestido era elaborado à base de chita e cretone ou bramante, de preferência muito colorido, multicolor e florido.

Havia a guarita, leve e fácil de montar e transportar, e a maleta onde eram arrumados os bonecos.

 

Felizmente que o Teatro de Robertos, quiçá uma das mais antigas tradições das artes cénicas, depois de passar por momentos de quase extinção, foi abraçado por muitos artistas e, novamente, reposto nos palcos e praças públicas. Merecem todo o destaque, nesta área, o Teatro Dom Roberto, com o hábil manipulador de robertos José Gil, Victor Manuel Costa – o Santa-Bárbara, que, de certeza, tiveram como exemplos os velhos mestres bonecreiros da década de 1950, como Manuel Rosado, Domingos Basto Moura, António Dias e Faustino Duarte, dono do pavilhão Três Irmãos Unidos.

Nas palavras de Manuel Rosado, vários factores terão contribuído para que estes espectáculos abandonassem as feiras e romarias “o aluguer das camionetas de carga, que é caro, as pessoas que se demoram hoje pouco tempo nas feiras, o ruído de milhentos altifalantes e a televisão, foi o que causou o afastamento do público rural”. Para além disso, segundo Manuel Rosado, esta arte perde a sua magia a partir do momento em que “a televisão mostra como se manipulam as marionetas, pondo a descoberto segredos que nós nunca revelamos”.

A primeira tarefa, e urgente, foi a recolha dos textos mais antigos como O Barbeiro, A Rosa e os Três Namorados, A Tourada, O Castelo dos Fantasmas, O Saloio de Alcobaça, etc., não esquecendo a chamada produção individual, pois cada mestre procurava sempre ter o seu próprio texto – e muito improviso - como é o caso do Assalto à Casa do Lavrador Avarento, apresentado por Basto Moura.



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