domingo, 11 de abril de 2021

A ARTE NOS JUGOS DO BAIXO CÁVADO

 

A ARTE NOS JUGOS DO BAIXO CÁVADO

 

Manuel Albino Penteado Neiva

 

 


 

“Se me perguntassem em que nação se observa maior variedade do modo de jungir os bois, sem vacilar, designaria Portugal”

 

Eugeniusz Frankowski – As cangas e os jugos portugueses…, 1916


Depois de revisitar dezenas de jugos que, desde 1982, tenho vindo a inventariar no concelho de Esposende, e tal como Eugeniusz Frankowski, etnógrafo polaco, atrevo-me a dizer que os nossos jugos são, porventura, dos mais formosos do mundo e peças que, desde crianças, nos habituamos a contemplar.Ao entrar num quinteiro ou na casa da eira de um lavrador do Minho, neste caso do concelho de Esposende, é provável que sejamos confrontados com belíssimas obras de jugueiros que, por já não serem necessárias, se encontram abandonadas, quiçá à espera de irem parar a uma lareira numa noite de invernia.O nosso vocabulário sempre foi enriquecido com palavras tão usadas no dia-a-dia dos nossos lavradores e que faziam parte da arte de jungir o gado. Quem não se lembra de ouvir falar do tamoeiro (couro que prendia o jugo à cabeçalha do carro), das piáças (que prendiam o jugo aos cornos), do temão (que segurava o jugo à cabeçalha), do cangalho (onde os bois metiam o pescoço) ou mesmo da partizela (ferro que ajustava o arco ao jugo).

 

Os Jugos

Não há dúvida que os jugos desta região primam pela riqueza dos motivos decorativos, não sendo verdade que, como alguns estudiosos/etnólogos procuraram dizer, estes jugos, dada a sua riqueza ornamental, não eram usados em trabalhos agrícolas mas só para ocasiões festivas - romarias, feiras, concursos pecuários e cortejos sendo mais um remate alegórico, um ornato festivo, um orgulho para os camponeses. Claro que quanta mais decoração maior é o jugo e, por seu lado, mais pesado se torna “para as cabeças leais dos bois ruminantes e fortes”. Mesmo assim, com toda esta decoração, eram objectos de trabalho e de uso diário.

Eram construídos tendo por base uma prancha ou tábua de madeira de carvalho, salgueiro, castanho, loureiro e mesmo freixo – dado ser uma madeira rija mas, em simultâneo, flexível e fácil de trabalhar, variando a sua dimensão entre 1,1m e os 1,5m, de largura, por 30 a 60 cm de altura. Normalmente tinham uma forma trapezoidal. A parte superior podia ser recta ou, então, formando ao centro um corte de telhado de duas águas com uma decoração arqueada ou dentada sendo esta orla superior enfeitada com pincéis de crina de cavalo, alternados de branco e preto, chamados cabelos e tantas vezes substituídos por elementos vegetais.

Curiosamente o grande poeta, da Grécia antiga, Hesíoso (séc. VIII ou VII a.c.), na sua obra “As Obras e os Dias” faz referência aos jugos que eram encimados por tufos de crinas de cavalo.

 

As decorações

A simetria impera na ordem decorativa dos jugos.

São variadíssimas as decorações que nos aparecem nos jugos variando entre baixos-relevos, abertos ou vazados e linhas sulcadas, habilmente trabalhadas com compassos de madeira, serras, verrumas, goivas, enxós, grosas, meias-canas e formões que entalhavam e lavravam, com mestria, covos regulares e unidos.

Os vazados, que conferem ao jugo grande beleza e leveza, aparecem-nos em forma de círculos, simples ou entrelaçados, de estrelas, de janelas ou frestas.

Segundo Armando de Matos, as decorações dos jugos podem dividir-se em simbólicas (tipo rosáceas) e decorativas (frisos e linhas). Já Leite de Vasconcelos opta por dividir estes belíssimos ornatos em símbolos extintos (crenças), símbolos vivos (religiosidade e magia) e ornatos simples (figuras geométricas).

À mistura, aparecem-nos desenhos representando meias-luas, cruzes, signos-saimão, estrelas, sois e astros, rodas, corações, custódias, flores, frutos, ramos, aves e peixes que, na opinião do grande etnólogo de Ucanha, Leite de Vasconcelos, poderão traduzir reminiscências de antigos cultos. Em muitos casos aparecem representações de figuras humanas e quadrúpedes. Nalguns casos a decoração é tão exuberante que nos faz recordar os baixos-relevos e os embrechados hispano-árabes de Alhambra (Granada - Espanha).

É natural que surja no pensamento de todos nós a pergunta sobre origem de toda esta decoração. É evidente que não será fácil responder. Representam uma secular manifestação de uma actividade artística tradicional e, numa análise muito simplicista, digamos que advêm da pura imaginação dos seus obreiros e, por isso, classificada com arte popular. Será mesmo assim?

Na Crónica de D. Pedro I, Fernão Lopes descreve um lauto jantar, aquando da vinda da rainha de Espanha, filha de D. Afonso IV, e que na mesa foram colocados dois bois assados ligados por um jugo muito enfeitado.

Ao olhar atentamente para os nossos monumentos, mesmo aqueles que remontam a eras mais remotas (dólmenes) vamos descobrir decorações que se replicam nos jugos. Não é por acaso que alguns estudiosos procuram explicações na civilização micénica, pelo menos muitos dos elementos decorativos estão aí presentes como os tão comuns triscelos e o tetrascelos ou ainda em civilizações mais recentes (românico) como a flor bizantina ou mesmo o chamado cata-sol (flor do girassol).

É, por isso, natural que os primeiros entalhadores de jugos olhassem, atentamente, para esses monumentos e lhe copiassem os elementos decorativos.

Se quisermos ser mais poéticos, entramos pelo caminho da contemplação e vemos esses artistas a olharem atentamente as curvas das montanhas ou mesmo o balançar das ondas do mar e imaginarem as curvas e contracurvas que enriquecem as peças saídas das suas mãos.

Não são raros os exemplos de jugos onde aparecem datas e nomes, sendo nestes dos proprietários ou dos próprios artífices.

 

Jugo 1

Ano - 1905

Com forma trapezoidal, muito simétrico na distribuição dos elementos decorativos.

O elemento central é a cruz florenciada, ladeada por elementos vegetalistas e encimada pela data 1905 e suportada por um enxaquetado.

A cabeça apresenta ao centro um suave corte de telhado de duas águas com uma decoração dentada.

A orlar o jugo surgem ramagens com folhas e frutos.

Praticamente toda a área central do mesmo é preenchida com elementos vazantes, de grande rigor estético, á base de janelas, frestas e meias-luas.

Na parte inferior duas flores bizantinas.

 

Jugo 2


Ano - 1943

Muito semelhante ao Jugo n.º 3 e, poder-se-á dizer, saído das mãos do mesmo jugueiro pois foi usada a mesma gramática decorativa, salvo algumas alterações que vamos evidenciar.

A figura central é o baixo-relevo de S. João Baptista com o lábaro e o cordeiro, encimado pela data 1943.

Em termos de elementos vazados, estes aparecem-nos na parte mais central, e representam círculos entrelaçados, janelas e frestas.

Os baixos-relevos que entremeiam os vazados, representam flores, folhas, e aves que debicam frutos.

Na parte superior, ao centro, um cesto de onde saem elementos vegetalistas, com folhas e frutos, de difícil identificação.

A parte inferior do jugo é rematada com rosáceas e elementos curvilíneos e contra-curvilíneos.

 

Jugo 3


Ano - 1944

Um dos maiores jugos desta recolha.

Apresenta ténues formas trapezoidais e aqui a simetria da decoração está bem patente. A cabeça é rectilínea e decorada com crinas de cavalo. As laterais são rematadas com elementos arqueados.

A decoração central representa as figuras de S. José, carpinteiro, e do Menino Jesus, a trabalhar na arte. Vêem-se a banca, o machado, a serra e a enxó. Tudo acompanhado pela legenda “Jesus Ajuda S. José”.

Em termos de elementos vazados, estes aparecem-nos na parte mais central, e representam círculos entrelaçados, janelas e frestas. Os baixos-relevos que entremeiam os vazados, representam flores, folhas, árvores, frutos e aves. Assim, de forma simétrica, em cada lado, existe um vaso de onde sai uma pereira folhada e frutada que se eleva até à parte cimeira do jugo e suporta uma ave que debica um cacho de uvas.

Na parte superior, ao centro, um cesto que suporta a data de 1944, saindo dele duas uveiras folhadas e frutadas que se estendem lateralmente.

A suportar os círculos entrelaçados dois vasos de onde saiem dois ramos folhados e floridos de framboesas.

A parte inferior do jugo é rematada com rosáceas e elementos curvilíneos.

 

Jugo 4

Ano - 1955

Jugo baixo, com ligeira forma trapezoidal.

O elemento central é a Cruz da Trindade, inserida num nicho com arco de volta inteira.

A cabeça apresenta ao centro um suave corte de telhado de duas águas com uma decoração arqueada.

A orlar o jugo surgem elementos geométricos contracurvados e ponteados.

Praticamente toda a área central do mesmo é preenchida com elementos vazantes á base de janelas e frestas.

Na parte inferior dois pentagramas.

 

Jugo 5

Ano - 1964

Considerado, também, um jugo baixo.

Apresenta ténues formas trapezoidais. A cabeça é quase rectilínea e decorada com crinas de cavalo. As laterais são rematadas com elementos arqueados.

O bordo superior do jugo é decorado com losangos preenchidos ora com flores, ora com meias-luas. Imediatamente a seguir um friso de círculos entrelaçados e vazados.

A decoração central representa uma Cruz da Trindade rodeada por elementos vegetalistas e por duas janelas.

A parte inferior do jugo é decorada com curvas e contra-curvas preenchidas com meias-luas.

Em destaque aparecem os pentagramas ou signos-saimão e os sois.

 

 

Jugo 6


Mais um jugo de grandes dimensões.

Apresenta forma trapezoidal.

A cabeça apresenta ao centro um suave corte de telhado de duas águas.

O centro é ocupado por um vaso com flores estilizadas tendo a seu lado elementos solares.

Possui uma decoração muito exuberante à base de elementos vegetalistas com vazamentos entre si. A parte inferior do jugo apresenta vazados em forma de janela e frestas.

Toda a borda do jugo é preenchida com baixos-relevos de ramos folhados.

Curiosamente em alguns elementos aparece a letra N que poderá ser uma forma subliminada de identificar o seu artífice.

 

 

Jugo 7

Jugo baixo, com ligeira forma trapezoidal.

O elemento central é a Cruz ornamentada com folhas.

A cabeça apresenta ao centro um suave corte de telhado de duas águas com uma decoração arqueada.

A orla do jugo, na parte superior, está decorada com duas fiadas de meias-luas, sendo as laterais decoradas com olhos.

A área central do mesmo é preenchida com elementos vazantes á base de janelas e frestas.

Na parte inferior duas rosáceas com seis folhas.

 

Jugo 8

Jugo baixo, com ligeira forma trapezoidal.

Está praticamente equipado com todo o material: arco, partizela, tamoeiro, piáças e temão.

O elemento central é o pentagrama ou signo-saimão ladeado por dois corações.

A cabeça apresenta ao centro um suave corte de telhado de duas águas com uma decoração arqueada.

A orla do jugo, na parte superior, está decorada com elementos geométricos (olhos e meias-luas) que descem pela lateral.

As meias-luas decoram, também a parte central do jugo.

 

Jugo de Chocolate da Nélia

Data 1967

Matéria-prima – Chocolate

Fabrico – 200 horas

Executante – Nélia - Manuel Dias Ferreira

Medalha de Ouro na XII Exposição Internacional de Pastelaria-Confeitaria.

Terá sido na década de 50, do século passado, que se iniciaram as grandes Exposições Internacionais de Pastelaria-Confeitaria. Das mãos dos mais consagrados chocolateiros saíam belíssimas obras de arte onde figuravam os nossos mais importantes monumentos e objectos com história. Nessas mostras apresentaram-se, entre outros, o Mosteiro dos Jerónimos, a Batalha, a Torre de Belém assim como exemplares dos mais belos coches guardados no rico Museu dos Coches, em Lisboa. Em alguns desses concursos destacaram-se as peças saídas das mãos do Mestre Pasteleiro/Chocolateiro João Silva de Sousa (1929-2014), natural de Vila Verde.

Fugindo a representação dos grandes monumentos, a Nélia, de Esposende, que já se vinha a impor, desde 1960, como pastelaria (nélias, dulces, esquimós o torrão Nélia, etc.) e chocolataria de excelência, quis honrar o trabalho dos jugueiros, lembrando, em simultâneo, o árduo trabalho do lavrador, e escolheu um artístico jugo, em chocolate, que mereceu os aplausos dos entendidos e do Júri da XII Exposição Internacional de Pastelaria-Confeitaria, sendo-lhe atribuída a Medalha de Ouro.

 

Conclusão


O trabalho destes obreiros de jugos está praticamente extinto e com eles perde-se uma valiosa fatia da nossa identidade cultural.

Com o desaparecimento da agricultura tradicional e a mecanização da mesma, era natural que os jugueiros e os jugos estivessem em vias de extinção. Acontece, porém, que são frequentes a aquisição destas peças, já altamente personalizadas, para fins puramente decorativos. Confessa um velho jugueiro que “as pessoas que vão a sua casa comprar jugos já não são os lavradores, mas pessoas que gostam deles para decoração”.

Ainda bem que é assim.

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