quarta-feira, 7 de setembro de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO NO CONCELHO DE ESPOSENDE - UM CORREDOR CULTURAL –

Por: Manuel Albino Penteado Neiva

III
A BARCA DO LAGO


Este ponto do itinerário merece um tratamento especial. Se dúvidas podem existir quanto ao curso do Caminho de Santiago de Rates à Barca do Lago, pois ao longo dos séculos poder-se-á ter alterado, não restam as mínimas dúvidas que, pelo menos até 1892 – altura em que é inaugurada a Ponte D. Luís Filipe, em Fão, este era o local, mais próximo da costa, onde os viajantes e os peregrinos cruzavam o Rio Cávado[1]. Aqui ancorou séculos e séculos a “Barca-por-Amor-de-Deus”. São inúmeras as descrições deste local em roteiros de peregrinação, desde os tempos mais remotos[2].
É evidente que no Século XIII esta passagem já seria importante ao ponto de influenciar a própria toponímia e antroponímia. Não é por acaso que nas Inquirições de D. Afonso III, em 1258, aparece em destaque o topónimo Porto Gonduffi.
Sobre este "Porto” têm-se levantado algumas hipóteses apontando para um germanismo. O Dr. Eduardo Regado[3] relacionou este topónimo com um outro existente na margem esquerda do Cávado – Felícia (Picoutos), quase em frente à Barca do Lago.
É assim que aparece em 1258 "esses que moram no Porto de Gonduffi soyam a dar renda al rey e ora no na dam “, e mais uma vez aparece associado ao termo “Gonduffi” a designação “Porto” que, segundo Cláudio Basto, “...é o sítio entre uma e outra margem, por onde se atravessa, se passa o curso de água, seja de que maneira for». Assim, a palavra porto tem o significado de «atravessadouro» de rio ou passagem.”
Cadafaz de Matos aponta a Barca do Lago como a possível passagem por onde terá transitado, em 1244, D. Sancho II aquando a sua peregrinação ao apóstolo da Galiza.
Curiosamente numa Procuração feita pelos irmãos da Irmandade da Barca do Lago a Manuel Carneiro Gaio, datada de 1635, diz-se "...ser esta passagem muito frequentada estando nesta pacífica posse pôr mais de 400 anos". Sendo assim, estarmos a recuar pelo menos em tradição, o funcionamento desta barca passagem, neste mesmo local, já desde o Século XI.
Nesta barca terá passado El-Rei D. Manuel I quando, também, foi em peregrinação a Santiago de Compostela e mandando pagar aos barqueiros, estes não quiseram receber respondendo: - “ Não é nada; é por Deus"[4].
A barca na pintura de José de Freitas
Esta passagem ficou registada no diário de viagem de Dom Edme de Saulieu, Abade de Claraval, que realizou essa viagem em 1531[5]. O Dr. António Cruz aborda esse roteiro de viagem nestes termos:
“...na festa dos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo do ano de 1532, descendo a faixa atlântica, depois de terem atravessado o rio Minho e demorado em Caminha, chegaram a Viana do Castelo … Reiniciando a caminhada, esperava Bronseval encontrar o Dom Abade hospedado em Belinho, o que denota, de alguma maneira, que o itinerário da jornada havia sido delineado de acordo com estudo prévio das terras a incluir na caminhada de cada dia, implicando, por isso, o conhecimento dessas mesmas terras, obtido, sem dúvida, na leitura dos anteriores Itinerários de outros caminheiros. Porém, não foi em Belinho, como esperava, que o Dom Abade pôde aposentar-se, nem tão pouco em S. Bartolomeu do Mar: num e outro lugar, os seus moradores, muito embora, e acaso, o desejassem fazer, não puderam ofertar-lhes aposentadoria, ou, sequer, abrigo para os cavalos.
Afastando-se um pouco da costa e prosseguindo a caminhada, encontraram, aqui e além, casas isoladas, mas não o abrigo desejado. Descia a noite, quando uma pobre mulher, finalmente, acolheu os viandantes e deu abrigo às suas montadas. E se não foi servida qualquer refeição a Monsenhor e à sua comitiva, não faltou um leito para o primeiro, improvisado sobre uma arca, recolhendo-se os seus companheiros, sem despirem os fatos da jornada, no cabanal dos porcos e das ovelhas, também destinado a abrigo das montadas.
O Dom Abade de Claraval celebrou missa, na manhã seguinte, numa pequena capela campestre, assistido por alguns dos seus homens, enquanto os outros cuidavam das bagagens e dos animais... Reiniciando a jornada, não demoraram o Dom Abade de Claraval e os seus companheiros a atravessar o rio no preciso lugar de todos os itinerários que remontavam à alta Idade Média. A estrada velha ia direita a Rates, entroncando aí com outra de acesso a Barcelos. Bronseval gaba a tranquilidade do Cávado, nestes precisos termos: un fleuve lent, mais tres profond et tranquille “.
Em 1669, o Grão-Duque da Toscana, Cosme III de Médicis (1670-1723) "acompanhado de grande séquito”, viajou em peregrinação a Compostela. Chegou a Compostela em Março do ano seguinte, 1670, depois de ter entrado em Portugal, por Badajoz[6]. Do seu diário consta que:
“...Este Cosme de Médicis, 3.º de nome, chegou a Viana da Foz do Lima em 28 de Fevereiro de 1669. Veio pela borda do mar pois a 27 esteve em Moreira e S. Pedro de Rates (...) A sua comitiva era numerosíssima, como convinha a tão opulenta personagem, e nem nela faltava um pintor para anotar os aspectos notáveis das terras por onde iam passando. Na manha do dia 28, segundo o relato, com tempo vário que resolveu em ligeirissima chuva (piogia) partiu sua Alteza de S. Pedro de Rates e passado o rio de Prado com barca andou a procurar a praia do mar, sobre as vilas de Fão e Esposende, uma sobre a margem outra à borda do mar”[7] .
Em 22 de Março de 1683 foi chamado o Padre Bento Leitão para celebrar um baptizado de uma criança a quem os pais chamaram Leonor. Curiosamente esta criança nasceu na Barca do Lago, na “estalage” e eram seus pais Santiago Balthazar e Magdalena Ocoonor, de nacionalidade irlandesa. Estavam de “passaje” para Santiago, quando acolheram à estalagem da barca para nascer a criança. Foram padrinhos Francisco Rodrigues – o estalajadeiro “ na mesma estalage” e Ana Lopes.
Também Domenico Laffi, um sacerdote Bolonhês, grande devoto de Santiago, que tinha já peregrinado a Compostela três vezes (1666,1670 e 1673) faria em 1687 uma nova peregrinação. Esta viagem foi descrita detalhadamente[8] e sabe-se que em 5 de Outubro de 1687 deixou cidade do Porto em direcção a Rates e daí a Viana passando na Barca do Lago.
Mais tarde, em 1743, Nicolás Albani, um cidadão Napolitano, veio em peregrinação a Santiago de Compostela. Fez uma descrição cuidada do seu regresso, entre aquele centro de peregrinação e Lisboa, saindo daquela cidade em 12 de Dezembro desse ano. Nessa sua viagem descreve que de Ponte de Lima para Vila do Conde "Caminhei todo o dia sobre areia, à borda do Mar"[9]. Estarmos certos de que seguiu de Viana para Esposende, junto ao mar e daí passou na Barca do Lago dirigindo se a Vila do Conde.
Em 28 de Abril de 1725, em passagem pela Barca do Lago, morreu repentinamente Francisca de Sea, natural de La Guardia, Reino de Galiza. Ficou sepultada nesta Igreja de Gemeses[10].
Em 7 de Setembro de 1746 “ se afogou Dom António de Santa Ursella “, que vinha de peregrinação e ia para a cidade do Porto. Era Frade Crúzio e se achou afogado no lago, junto ao muro por detrás da Capela. Foi enterrado com todas as solenidades na Igreja Paroquial, nas sepulturas destinadas a Clérigos, tendo sido sufragado por 40 padres. Era natural de Lisboa.
Quando foram redigidas as Memórias Paroquiais, em 1758, o texto de Gemeses descrevia assim a Barca do Lago:
“Aqui está a barqua do Lago, que he por donde passa a estrada real da cid.e do Porto p.a Villa de Vianna, e passa de graça a toda a casta de passajeiros, e só os carros, q nella passão, indo carregados pagam 40 reis cada hú, e não levando nada pagão a 20 rs … Os moradores desta fr.a, a de Gandra e a metade da de PaIm.a não pagam nada; por estarem obrg.d esta freg.a a dar dois barq.os a de Palm.a, e a de Gandra outros 2 cada hua seu; a metade dos moradores da freg.a de Palm.a meya raza de milho, e os solteiros a coarto. E os moradores do Castelo do Neyva cada hum seu molho de cevada branca, e os da freguesia de Velinho cada hú seu molho de centeyo, os das frg.as de S. Bartholomeu, e de s. Miguel das Marinhas cada um seu molho de trigo, e outro de centeyo … da parte do Sul a freg.a de Fonte boa, a de Barq.os, e a de S. Miguel da Apullia cada morador he obrigd.o a lhe dar hu molho de trigo, outro de centeyo; e os da frg.a de S.ta Marinha de Rio Tinto cada hu 2 molhos de centeyo; e os moradores do lugar de Guilheta da frg.a de S. Payo dantes da parte do Norte cada hu seu molho de centeyo.
Nesta passaje há húa estallaje, q he do sobredito Joam de Vasconcellos, q bem podia tambem chamar-Ihe hospital pella carid.e com q de ordinr o se ha o estalijadeiro com os passajr, q considerando-os a todos tocados de febre os vay sangrando lentamente.
Mas nem sempre se passou confortavelmente nesta Barca, muito menos eram bons serviços prestados pelos estalajadeiros. Dessa pobreza dá-nos conta uma memória redigida em 1820, escrita aquando a viagem de Domingos de Oliveira Maia a Paris [11] e em certo momento escreveu que “...Pousaram na Barca do Lago, passando a primeira noite fora de portas em camas de colmo podre. Só foi capaz de os fazer passar pelo sono o cansaço da jornada. Na madrugada do dia seguinte partiram da «infernal pousada» sem levarem saudades. O taberneiro fez pagar bem a impertinência dos hóspedes.

A “Barca-Por-Deus”

Hoje, a Barca do Lago cobra a portagem; mas aquelle madeiro, idoso, gradeado como de barcas, ainda nos leva pela sua tradição cândida a fazer a inútil travessia das suas tábuas que um velhotes torneia com a vara de modo a, quando a proa vira, já a popa está encalhada na areia da outra margem como se um eixo a atravessasse a meio da quilha.[12]
Num trabalho de Adélio Marinho Macedo em que descreveu as barcas existentes no rio Cávado, a jusante de Prado, tivemos oportunidade de ler a memória desta barca, reportando-se, naturalmente, a uma descrição recente que não irá para além de princípios do século XX. Ao deslocar-se a Gemeses, o autor procurou saber junto de pessoas mais idosas “coisas” sobre esta passagem, a forma como se fazia e sobre tudo isso escreveu que:
“... Algumas informações conseguiram-se junto de pessoas que viveram em contacto diário durante vários anos com a tal barca de carga; a escassa documentação existente sobre este assunto pouco ou nada nos esclareceu quanto à forma e estrutura desta tão rudimentar embarcação. Valeu-nos uma reprodução que encontrámos na Barca do Lago, construída anos atrás para figurar num «Cortejo Etnográfico» das Festas das Cruzes; embora de proporções totalmente desencontradas das da extinta barca, foi, no entanto, a nossa melhor orientação no respeitante à sua estrutura e construção.
Simétrica em relação a um eixo longitudinal e outro transversal, a sua planta era de forma rectangular, com ligeira curvatura (para fora) dos lados maiores; o fundo apresentava uma pequena convexidade no sentido de cada um dos seus dois eixos, maior e menor. Os lados detinham-se um pouco acima do nível do estrado (chão ou soalho) e dos topos das testeiras que se erguiam na vertical, e ligavam ao fundo, através de concordâncias curvas - encolamento - cujo nome não foi possível apurar. As bordas eram ainda protegidas por meio de uma guarda (grades, varais ou resguarda).
As grossas cavernas (cadilhas), formadas por duas ou três peças, ficavam a pequena distância umas das outras; serviam de base aos pontaletes (barrotes) que aguentavam as travessas transversais onde eram pregadas as tábuas que formavam o estrado (chão).
O tabuado do casco era fixo ao cavername com cavilhas de madeira e pregos, encostando-se as tábuas umas às outras sem haver sobreposição.
As rampas de acesso situavam-se nos topos da embarcação, e ora eram descidas para se fazer a carga e descarga, ora erguidas em trânsito. Cada uma delas girava no topo da respectiva testeira, por meio de um cano que lhe servia de eixo e com o qual era solidária; este funcionava em dois ganchos fixos à parte superior das testeiras. Junto ao estrado (chão), outros dois ganchos seguravam as alavancas que faziam erguer a rampa; ao mesmo tempo uma série de travessas apostas pela face inferior constituíam suporte transversal ao tabuado que a formava.
A meio do estrado (chão) encontrava-se um alçapão quadrangular que dava entrada a um pequeno porão ou falso de onde o barqueiro tirava a água que a barca colhia
Dos registos existentes na Direcção Hidráulica do Douro copiámos o que se supõe constituir as dimensões da última barca que serviu na Barca do Lago (registada em 1941 e extinta em 1947)[13] .”


Comprimento
(m)
Pontal
(m)
Boca
(m)
Tonelagem
(Kg)

Barca do Lago

9,90
0,65
3,2
6324



[1] - Sabemos, também, que no cais de Fão existia um barco que fazia a passagem das pessoas de uma margem para outra. No entanto e dada a correnteza que aí se fazia sentir, não era de todo uma passagem que oferecesse segurança.
[2] - Para melhor conhecimento desta Barca de Passagem aconselhamos a leitura de: NEIVA, Manuel Albino Penteado (2003) – Gemeses: Terra de Passagem, Ed. Fábrica da Igreja de Gemeses, Gemeses. Neste livro foi dedicado um capítulo especial intitulado A Barca do Lago: A Passagem da História.
[3] - REGADO, Eduardo – Barca do Lago: O Antigo Porto Gonduffi, in “O Fangueiro”, Ano II, N.º 29 de 26.4.1959
[4] - VILLAS-BOAS, Conde de (1949) – A Barca do Lago, in “Douro Litoral”, Porto, 3,ª Série, N.º 5.
[5] - Claude de Bonserval – Peregrinatio Hispanica, 1531-1533, I, Paris, pp. 306-313
[6] - CUNHA, Arlindo de Magalhães Ribeiro da -  A Devoção a Santiago no Concelho de Barcelos, in “Actas do Congresso Barcelos Terra Condal”, Barcelos
[7] - QUEIROZ, Francisco de – Cosme de Médicis em Viana do Castelo, in “Arquivo do Alto Minho”, Vol. I, Fasc. I
[8] - CUSATIS, Brunello de – O Portugal de Seiscentos na “Viagem de Pádua a Lisboa” de Domenico Laffi, Lisboa, 1998
[9] - ALBANI, Nicolás – Viagem de Nápoles a Santiago de Galícia, version castelhana de Isabel Gonzalez, Madrid, 1993
[10] - A.D.B. – Livro Misto N.º 4
[11] - A.B. – Evocação de uma viagem a Paris em 1820, in “2.º Caderno de O Primeiro de Janeiro” de 1.1.1966
[12] LEITÃO, Joaquim (1908) – Guia Ilustrado de Esposende
[13] - MACEDO, Adélio Marinho de e FIGUEREDO, José António – As Barcas de Passagem do Cávado, a Jusante de Prado, Cadernos de Etnografia, N. 5, Barcelos, 1966

Um comentário:

  1. Peço desculpa mas a aguarela da barca não é de José de Freitas mas sim de João de Freitas. Penteado Neiva

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